Quem lê / Who's reading

"a escrita é a minha primeira morada de silêncio" |Al Berto

sábado, 31 de maio de 2014

Queda

Um dia decidi cair. Atirar-me de lá. Ao ver-me aproximar da beira, um uníssono “NÃO!”. Um abismo era o que todos viam. Um mar calmo e de águas límpidas a meus olhos.

Hesitei. Poderiam dois olhos ver melhor que tantos outros juntos?
Face a face com a dúvida, restou olhar para dentro e perguntar. De olhos cerrados, ouvia o som do marulhar, não ouvia ventos ocos.

A voz sussurrava-me, tu sabes.
E eu sabia.

E por isso deixei-me cair.
O splash senti-o na pele, a liberdade na alma.

Navego hoje, a água leva-me sempre ao destino. E se não for hoje, é amanhã.

Liberta do corpo de mulher, podia ser sereia. Mas já não preciso definir-me. 

Sei-me.


Para a Rosa, 
que teve a coragem de se encontrar

Arte: Sergey Samsonov

sábado, 24 de maio de 2014

Reflexo

Olho o estranho reflexo no espelho e não o reconheço.
Na maioria dos dias é só o outro reflexo, o normal, aquele que não me faz perguntas incómodas, que nem me fala sequer!
Mas este, que aparece de vez em quando sem aviso, tem sempre perguntas, demasiadas perguntas!
E não tenho coragem de lhe responder, não quero saber a resposta, quero apenas que ele desapareça, aquele reflexo!
Não gosto dele, é inconveniente, aparece sem ser convidado, por mais que o ignore, não entende que não é desejado.
Por isso decidi: Amanhã o espelho sai desta casa!

Foto: Laura Williams


sábado, 17 de maio de 2014

Terminal de aeroporto


Música: Dead Combo – O assobio

Laura está em frente ao placard de partidas do aeroporto, tenta decidir para onde irá desta vez.
Acaba de aterrar e, mais uma vez, não encontrou o que procurava.
Olha para a sua bagagem. A pequena mala está cada vez mais gasta, pergunta-se quantas viagens mais aguentará.
Em cada nova viagem torna-se mais difícil de fechar, o que a fará estar tão mais pesada agora? – pergunta-se Laura. Para mais, parece-lhe cada vez mais pequena.
Talvez seja apenas o cansaço a falar.
Volta ao placard, as pequenas letras luminosas não lhe indicam o destino. Já tentou a maioria deles.
Desvia por momentos os olhos do néon, talvez precise mesmo descansar.
Encontra um banco livre e vai sentar-se por um pouco.
Nota então, lá ao fundo, uma banquinha com publicidade a destinos de viagem.
Decide ir ver, talvez lá encontre uma ideia de destino.
Puxa pela sua mala; até as rodas parecem já estar demasiado gastas, mas prometeu que a levaria sempre consigo, em cada viagem, até encontrar o que procurava.
Tantos panfletos espalhados, nem sabia por onde começar!
Foi pegando em alguns, destinos turísticos, cada um com a sua finalidade, praia, museus…
Folheou-os, leu-os, a maioria eram destinos conhecidos, os poucos que restavam não lhe pareciam prometedores.
Ia desistir da ideia dos panfletos, quando chegou alguém, devia ser a responsável pela banquinha.
Pegou num panfleto e estendeu-lho. “É este que procuras!”
Estranhando, Laura hesitou. “Toma”
Laura pegou-lhe, curiosa, percebendo que, curiosamente, se sentia agora menos cansada.
Abriu o panfleto.

 Lá dentro, apenas um espelho.

Foto: Kawika Singson



***


Este conto foi publicado originalmente aqui, no Blog Pense fora da caixa. Descubra também os meus textos neste espaço.


quarta-feira, 14 de maio de 2014

Essencial




Há quanto tempo
Não ouvia este som?
Simples e visceral.
Porque se fecham
Os nossos ouvidos
Ao que é vital?
Talvez seja o compasso
A necessidade
Que tornem tudo tão habitual…
Oiço agora,
Para dentro e para fora,
Como seria natural…
Quando apenas empurramos
para dentro, esquecemos
Do que é essencial…

Volto à pergunta inicial,
Há quanto tempo não ouvia
A minha própria respiração…?

sábado, 10 de maio de 2014

Silêncio



Tango with lions – in a bar 

O dia está tão silencioso que posso ouvir os ponteiros do relógio a moverem-se, compassadamente. Mas tão, tão lentamente. Tão lentamente, que entre cada minuto, posso rever a minha vida toda na minha cabeça. Num minuto de trás para a frente, no minuto seguinte, da frente para trás. Significará isso que o tempo ora passa devagar, ou que a vida foi curta, no que importa contar?

Nos dias em que o significado das coisas me abraça, são essas as perguntas que me faço. E com a falta de respostas, o relógio anda mais devagar, e esse abraço aperta-me ainda mais, quase não me deixa respirar.

E não nascem respostas, só mais perguntas…




quarta-feira, 7 de maio de 2014

O meu jardim


Todos os dias passo lá
No meu jardim;
Olho as rosas
As orquídeas
E as tulipas.
Ponho água na terra
Falo com ela
Retoco os pigmentos
Por vezes.
E assim, ainda que haja
Chuva
Frio
Ou neve…
No meu coração
Consigo sempre encontrar
A Primavera.





Publicado originalmente no Tubo de Ensaio - Laboratório de Artes, aqui.

sábado, 3 de maio de 2014

Corsário serias

Arte: Magritte - the lovers
Não é teu
O beijo que me roubaste
Julgas-te requintado
Corsário
Mas és apenas um vulgar pirata,
Como tantos outros,
Outros que pensam roubar
Corações; por aí,
Mas que apenas frémito levam,
Nada mais descobrem, sequer,
Que existe.

Ainda se te propusesses saquear
O tesouro que tinha guardado,
Esse que tinha para ti…
To daria, se mo pedisses…


Este poema foi publicado originalmente aqui, no Beco de Ideias, blog onde colaboro regularmente.
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