# Monólogos da Desalinhada #
Isa Lisboa
Doem-me as tatuagens. Não era
suposto doerem-me, não agora. Era suposto ter sido apenas aquela dor – a da
tinta a entranhar-se, pigmento a pigmento, a gravar-se em mim. Só essa dor.
Momentânea.
Dor que se transformaria em cor, num
desenho que ficaria para sempre, mas que me faria sorrir quando me olhasse ao
espelho. Que me faria sorrir por ter vencido as cicatrizes, por delas ter
criado algo de belo, que não mais doía ao olhar, que não mais afastava os
estranhos, que não mais me afastava a mim. Que não mais me faria empurrar para
longe quem se aproxima.
Doem-me as tatuagens. Doem-me como
se fossem velhas feridas, daquelas que doem nos dias de frio. Doem-me como se
fossem um membro estraçalhado, tirado de mim para que o sangue doente não mais
passasse e não fizesse estragos no que sobrasse. Tira-se uma parte de nós, mas
ela continua a doer, nos dias de chuva, nos dias de calor, nos dias em que tudo
dói.
Dói-me e sei que estou viva, dói-me
e sei que já vivi. A dor diz-me que nada do que fazia sentido, o faz mais, que
me enganei em tudo o que esperei, que me enganei em tudo o que dei.
Doem-me as tatuagens, as que fiz com
raiva, e mais ainda as que fiz com amor. O amor, em qualquer das suas formas,
tem tanto o poder da cura milagrosa, como o poder de tudo devastar.
O lado negro do amor é como se fora
uma bomba atómica. A ele poucos sobrevivem, e quando a explosão se dá, aqueles
de nós que ficam de pé, não mais se reconhecem, o corpo já não é o nosso. Na
alma ficam sulcos, enormes, como se foram machadadas, investidas por um
lenhador inexperiente, que em vez de cortar o tronco em duas estocadas misericordiosas,
investe várias vezes, tantas vezes, deixando ali lascas perdidas, indiferente à
seiva que corre, perdida no chão da floresta.
Doem-me as tatuagens, as que fiz
para lembrar, ainda mais as que fiz para esquecer. Já não era suposto
doerem-me, escondi as cicatrizes com elas…
|
Arte: Sam Spratt |