![]() |
Foto: Crushed_ Desgarrada - Don_Gato |
Acordou cedo e sentiu o Tempo à sua volta. Estranhamente, o
Tempo era quente.
Despiu a camisa de dormir e foi tomar banho. Água morna. Passou
o sabão azul e branco pelos cabelos, pela pele. Terminou com água quase fria.
Sentia menos o calor, agora.
Ao sair, viu-se de relance ao espelho. Voltou atrás. À tanto
tempo que não se via: os lábios que há muito não eram beijados, as carnes que
nunca foram tocadas, as pregas na pele que a faziam esquecer a possibilidade de
novas promessas. O cabelo húmido e branco pingava-lhe pelas costas. Usava-o num
rolo, preso com ganchos; não para esconder o branco, mas apenas para o segurar.
Nunca conseguiu cortá-lo.
Hoje era o primeiro dia depois de ontem.
Misturado com o calor, sentia ainda o cheiro das flores e ouvia
o som das lágrimas que caíram despudoradas. Não as dela, essas só caíram
durante a noite, até se sentirem exaustas e a fazerem adormecer.
Vestiu um dos vestidos de ir à rua e calçou as alpercatas.
Saiu e viu que a aldeia continuava. Passou pela igreja e estava
vazia. Não entrou. Chegando á venda, aviou-se e, de saco na mão, sentou-se no
banquinho em frente. Fechou os olhos e ouviu a voz fraternal. A única que
sempre teve.
“Preciso que vás ver dele.”, disse-lhe ela. “Amanhã falamos
mais.”
E ela levantou-se.
A casa era duas ruas mais à frente. Usou a sua chave para
entrar, e começou a fazer o desenjum para ambos.
Sem precisar de o chamar, ele veio à porta. Também dormiu pouco.
“Hoje não vou à eira.” – disse ele.
“Pois que seja, fico cá contigo hoje. Hoje não é dia de rega. Só
amanhã. Ficamos por casa….”
O dia passou-se em silêncio. Sem movimentos.
Anoiteceu.
Hoje era o primeiro dia depois de ontem. Hoje o seu irmão era
viúvo.
E hoje ambos começaram a aprender a ser sós um com o outro.
Isa Lisboa
Sensível e muito bom!
ResponderEliminarBeijinho
Muito obrigada, Ana! :)
ResponderEliminar