Este conto foi escrito entre Novembro de
2011 e Novembro de 2012… Resgatado de entre memórias difusas, realidades que se
confundem com sonhos, todas apanhadas pela caneta de uma escritora…
I
Acordo ouvindo vozes há minha volta, parecendo distantes como se um
vidro estivesse entre nós... Abro mais os olhos e vejo que existe, sim, um
vidro, à minha volta, redondo, com filigranas de cor rubi... como os
do copo de que acabei de beber... Vejo à minha frente a cara do Maître, um
gigante...Não, não é gigante, sou eu que estou minúscula, dentro do cálice que
me ofereceram. Ainda adormecida de todas estas novas sensações, tento perceber
o que se passa, consigo perceber que não chegarei ao topo, não vislumbro
como poderei sair... O Maître diz-me "Não podes sair", como se
adivinhasse os meus pensamentos. Começo a recuperar as forças, e bato no vidro,
que se passa, onde me levas, responde-me...
Seguimos
no carro por entre as árvores verdejantes, que formam um arco sobre as nossas
cabeças, deixando a sensação de estarmos a ser guiados por um roteiro mágico.
Ao fundo vislumbra-se por entre a vegetação densa o que parecem ser as torres
do castelo de uma princesa de contos de fadas, quase espero que a fada Sininho
passe alegremente a fazer as suas travessuras...
Ao
longe vejo uma fogueira a crepitar no cimo da serra, mantém-se uma chama viva,
apesar de a chuva bater cada vez mais forte. Lembram-me dos rituais que se diz
são ainda praticados por aqui... Imagino pós a serem lançados à fogueira,
mantendo aquela chama crepitante e tão misteriosa...
Chegámos
à aldeia, seguimos agora pelas ruas estreitas, direita, esquerda, em frente,
direita. Paramos junto ao velho coreto, imagino-o testemunha silenciosa e
paciente de amores e desamores, revoluções e conspirações, danças pagãs
e procissões em honra aos santos. Vários carros parados, um
lugar vazio, um único, parece que reservado para nós.
Entramos,
espera-nos um mestre de cerimónias, vestido a rigor. O seu olhar de imediato me
prende os olhos, sinto a vento a fustigar-me as costas, a porta atrás de mim
fecha-se com a força do vento.
Dirigimo-nos
à mesa, um lobisomem entra furtivamente na sala, enquanto me sento em
frente a uma aranha que se passeava pela mesa e que estranhamente parece
olhar-me como se fosse uma presa... Por um breve momento, preciso lembrar-me de
que é Noite das Bruxas, em que os monstros saem à rua, o único dia em que podem
passear-se livremente, sem assustar os mortais...
Trazem-nos
a ementa para a noite, o que me distrai das intrigantes sensações que me
assaltam desde que cheguei. Como entrada, Salada de Tentáculos de Monstro
Marinho, com Óleo de Azeitonas Embruxadas, seguindo-se Peito de Dragão Alado
com Frutas dos Duendes embebidas em Poção Mistério. Assim avançamos até à
sobremesa, Tarte de Frutos do Bosque Encantado com raspas de Asas de Morcego.
À
volta, o lobisomem continua a passear-se,
falando descontraidamente com uma vampiresa que parece
pronta para voar pela noite em busca não entendo de quê...
Passamos
ao pequeno jardim, onde abóboras suspensas no ar - como terão feito este truque
- iluminam este espaço onde a noite se adensa. Trazem-nos um cálice, dizem-nos
que são lágrimas de feiticeira, néctar muito raro, que temos que provar, pois
nunca esqueceremos o sabor daquela bebida exótica. Começo por saborear um
pouco, deixando o sabor apoderar-se dos meus lábios, sinto uma mistura de doce
com pimenta, que fervilha na pele, convidando a beber mais. Arrisco e sinto que
um leve fogo me queima a garganta, e avança pelos meus músculos, sinto como que
um vórtice me suga e perco os sentidos...!
Acordo ouvindo vozes há minha volta, parecendo distantes como se um
vidro estivesse entre nós... Abro mais os olhos e vejo que existe, sim, um
vidro, à minha volta, redondo, com filigranas de cor rubi... como os
do copo de que acabei de beber... Vejo à minha frente a cara do Maître, um
gigante...Não, não é gigante, sou eu que estou minúscula, dentro do cálice que
me ofereceram. Ainda adormecida de todas estas novas sensações, tento perceber
o que se passa, consigo perceber que não chegarei ao topo, não vislumbro
como poderei sair... O Maître diz-me "Não podes sair", como se
adivinhasse os meus pensamentos. Começo a recuperar as forças, e bato no vidro,
que se passa, onde me levas, responde-me...
Entrega-me
noutras mãos e vejo à minha frente aqueles olhos perturbadores que ao início da
noite me chamaram a atenção... Ao olhá-lo mais de perto, sinto o corpo
adormecer, fico quieta, presa naquele olhar... Bebeste as lágrimas de
feiticeira... Quando te vi, sabia que as provarias... Que queres de mim??? Como
aconteceu isto...? Pergunto, com um misto de confusão, medo, sensação de que
apenas posso estar a sonhar... As lágrimas de feiticeira são poderosas, quem as
bebe fica prisioneira de quem serviu o cálice... Porque me queres como tua
prisioneira? Os seus olhos não paravam de me fixar, como se estivessem mais
fascinados comigo, do que eu estava com tudo aquilo, sentia-me já não com medo,
mas como que hipnotizada...
Não
irei fazer-te mal, prendi-te neste cálice porque quero olhar-te, um dia já fui
assim, e perdi quem eu fui... Quem tu foste? Já fui humano e com o olhar cheio
de esperança como tu, tornei-me numa criatura da noite e não me lembrava de
como era antes... Quero levar-te comigo, posso contemplar-te durante horas
a fio, será que consegues devolver-me um pouco do que era...?
Fiquei
suspensa daquelas palavras, daquele olhar saudoso e que sofria... Não precisas
de mim para te lembrares como é ser humano, disse-lhe, se não estivesse ainda
dentro de ti, não o terias reconhecido quando me olhaste, eu seria indiferente
para ti, apenas mais uma mortal... Sei que te lembras, e sei que também te
lembras que não se prende a esperança, porque senão ela morre...
Tens
razão, não posso manter-te aqui... Passou a mão por cima do cálice e de novo um
vórtice me puxou, desta vez para fora do copo. Obrigada, disse eu, e sem saber
se o devia fazer, peguei-lhe na mão, enorme, com garras, assustadora... Por
momentos vi, vi quem tinha sido aquela criatura do imaginário... Vi que foi um
homem com sonhos, alegrias e, sim, esperança... Vi como perdeu tudo isso, como
se transformou num dos nossos medos mais profundos...
Senti
vontade de ficar ali mais um pouco, apesar de ele me dizer "Estás livre,
podes ir embora, ninguém te travará." Fiquei, mais um pouco, lembrei-lhe
daquelas pequenas coisas que fazem os humanos felizes, vi um brilho nos olhos
dele, ouviu tudo e disse, "Preciso ir-me embora, apenas na Noite das
Bruxas podemos estar entre os humanos, a noite está a acabar."
"Posso
voltar na próxima Noite da Bruxas?", perguntei. Não esperei pela resposta,
"Até daqui a um ano, estarei aqui", e saí, livre, como tinha chegado.
II
Há um
ano que a serra me chama. Embrenho-me cada vez mais nas suas profundezas e nem
sinal do meu misterioso amigo. A não ser a estranha convicção de que alguém me
observa, a uma distância que não sei quanto segura é.
Quase
me aventurei na noite, disposta até a encontrar vestígios dos velhos rituais que
não sei se já consigo compreender.
Mas
só numa noite do ano podemos estar entre os humanos, disse-me ele. Não fora
isso, e o apelo da noite seria – suspeito - irresistível. Só assim já me acorda
a meio da noite, arrancando-me de um sonho que acaba sempre da mesma forma.
Volto
àquele sítio, sou eu mesma, vejo o meu rosto reflectido nos espelhos, não foi
sonho, não naquela noite, apenas nas que se seguiram.
Aproxima-se
outra noite das bruxas, ainda sei o caminho, voltarei lá. Vou cumprir a minha
promessa, não apenas para manter a minha palavra, mas porque os sonhos não me
são suficientes.
III
Noite
de bruxas.
A lua
cheia ilumina-me o caminho, por entre uma chuva fininha que deixa pequenas
marcas na estrada, como que a deixar a marca do caminho de volta a casa. Que
neste momento não sei se quererei encontrar.
Chego
às mesmas ruas estreitas, direita, esquerda, em frente, direita. Lá continua o
velho coreto, a olhar-me imponente, como se me conhecesse a mim e ao meu
destino. Olhei à volta e encontrei as escadas, subi.
De lá
de cima via-se a vegetação à volta, densa, envolta por um nevoeiro que parecia
poder tocar-se.
De
entre essa nuvem branca surgiu uma sombra na noite, que se materializou ao meu
redor, sussurrou-me ao ouvido “Vem comigo”, e eu disse sim. Envolveu-me na sua
capa e levou-me, esquerda, frente, direita, esquerda, vento, árvores, perdi o
caminho.
“Onde
estamos?” – quis eu saber.
“Em
minha casa” A mesa já estava posta para os dois, não queria jantar,
queria perguntar-lhe tanta coisa, queria dizer-lhe tanta coisa, mas ele
puxou-me uma cadeira, sentei-me.
Satisfez-me
a curiosidade, deixou que o inundasse de perguntas. Calei-me então, e ganhei
coragem para lhe dizer: “Tens vindo visitar-me, aos meus sonhos.” “De dia sou
eu, de noite, estou contigo.”
E
estendi-lhe a mão, “Quero que me vejas, como eu te vi naquela noite.”
Segurou-me
a mão, gentilmente, apertou-a entre as suas mãos de fábula, e libertei a minha
alma, para que a visse, para que se visse como eu o via.
Quando
abri os olhos, vi que os seus estavam tristes. Que se passa?, perguntei. Não
devias querer estar comigo. Porquê? Tens apenas uma vida para viver, não a
eternidade de momentos para desperdiçar. E porque seria desperdício, estar
aqui, contigo? Lembras-te do que te disse? Apenas numa noite do ano estou
visível aos humanos… Eu sei, mas senti-te comigo nas outras noites, até durante
o dia… Apostaria que estavas perto… Estava perto, mas não te poderei nunca
tocar, apenas ver-te dormir, enquanto sonhas. Mas hoje não…
Lá
fora a chuva aumentou, batia forte nos vidros, podia imaginá-la a formar um
rio, um rio que nos renovaria.
E
assim ao som da chuva, a nossa pele se fez igual, as mãos, os braços, os
lábios, iguais, podiam tocar-se, sem medos, sem mais que o outro. E assim numa
noite amei como se um ano fosse, como apenas numa noite mágica o poderia fazer.
Deixei de ser eu, deixou de ser ele, na realidade não interessava, tudo éramos
nós.
O
nascer do sol aproximava-se, percebeu. Trouxe-me um cálice e ofereceu-me. “Não
são lágrimas de feiticeira?” – Perguntei. Sorri. “Não, não quero prender-te
mais. Nunca mais.”
Era
quente, doce, mas tinha um toque amargo, bem lá no fundo, quase imperceptível,
mas que ficou a escorregar-me na garganta, tentando libertar-se do doce. “O que
é?”
“Chá
de Lethe” (*). Tocou-me docemente numa madeixa do cabelo, com um olhar de
saudade que me deixou confusa, beijou-me de novo e eu deixei-me ir, esqueci o
toque amargo do líquido que acabara de beber.
IV
Tenho
acordado sobressaltada, os sonhos não me deixam. Não os entendo, voo pela
serra, mas não tenho asas, nem sequer corpo, voo e não chego a lugar nenhum,
limito-me a deambular, perdida nos céus da serra. Todos os dias sonho, todos os
dias o sonho me acorda. Antes sonhava que bebia um vinho rubro, o vidro
quebrava-se-me nas mãos, o líquido inundava o chão e eu fundia-me com ele, não
me afogava, apenas deixava de existir ali. Agora sonho com os céus da serra.
Sonho
em sobressalto, acordo e sinto um vazio que não sei tocar, a que não sei dar
nome.
O meu
caderno tem algumas folhas arrancadas. Não sei porquê. Talvez tenha lá escrito
os sonhos de outras noites, porque me parece que já estive neste sonho antes.
Tenho
menos sonhos agora. As noites são mais calmas. Os dias também. Eu não.
Está
sol. O dia está bonito. Mas espero a noite. A lua é mais bonita, faz inveja ao
sol. A noite é silenciosa, posso sentar-me a ouvir. Oiço muitas coisas à noite,
muitas histórias, muitos murmúrios. Tento ouvir-me a mim mesma, há algo que
tento ouvir. Mas não sei o que é. Mais difícil encontrar, quando não se sabe o
que se procura.
A lua
está tão bonita hoje. Ali, no cimo da colina. Parece que dorme no seu regaço.
Junto à casa da colina. Sempre me fascinou, aquela casa, escondida lá em cima.
Não sei bem porquê. Um dia irei lá.
Na Grécia
Antiga, Lete ou Lethe (em grego
antigo λήθη; [ˈlεːt̪ʰεː], grego
moderno: [ˈliθi]) literalmente significa
"esquecimento".
Na mitologia
grega Lete é um dos rios do Hades. Aqueles que
bebessem ou até mesmo tocassem na sua água experimentariam o completo
esquecimento.