Quem lê / Who's reading

"a escrita é a minha primeira morada de silêncio" |Al Berto

sábado, 31 de outubro de 2015

Noite de Bruxas (Republicação)


Este conto foi escrito entre Novembro de 2011 e Novembro de 2012… Resgatado de entre memórias difusas, realidades que se confundem com sonhos, todas apanhadas pela caneta de uma escritora…




   I


Seguimos no carro por entre as árvores verdejantes, que formam um arco sobre as nossas cabeças, deixando a sensação de estarmos a ser guiados por um roteiro mágico. Ao fundo vislumbra-se por entre a vegetação densa o que parecem ser as torres do castelo de uma princesa de contos de fadas, quase espero que a fada Sininho passe alegremente a fazer as suas travessuras...


Ao longe vejo uma fogueira a crepitar no cimo da serra, mantém-se uma chama viva, apesar de a chuva bater cada vez mais forte. Lembram-me dos rituais que se diz são ainda praticados por aqui... Imagino pós a serem lançados à fogueira, mantendo aquela chama crepitante e tão misteriosa...


Chegámos à aldeia, seguimos agora pelas ruas estreitas, direita, esquerda, em frente, direita. Paramos junto ao velho coreto, imagino-o testemunha silenciosa e paciente de amores e desamores, revoluções e conspirações, danças pagãs e procissões em honra aos santos. Vários carros parados, um lugar vazio, um único, parece que reservado para nós.


Entramos, espera-nos um mestre de cerimónias, vestido a rigor. O seu olhar de imediato me prende os olhos, sinto a vento a fustigar-me as costas, a porta atrás de mim fecha-se com a força do vento.


Dirigimo-nos à mesa, um lobisomem entra furtivamente na sala, enquanto me sento em frente a uma aranha que se passeava pela mesa e que estranhamente parece olhar-me como se fosse uma presa... Por um breve momento, preciso lembrar-me de que é Noite das Bruxas, em que os monstros saem à rua, o único dia em que podem passear-se livremente, sem assustar os mortais...


Trazem-nos a ementa para a noite, o que me distrai das intrigantes sensações que me assaltam desde que cheguei. Como entrada, Salada de Tentáculos de Monstro Marinho, com Óleo de Azeitonas Embruxadas, seguindo-se Peito de Dragão Alado com Frutas dos Duendes embebidas em Poção Mistério. Assim avançamos até à sobremesa, Tarte de Frutos do Bosque Encantado com raspas de Asas de Morcego.


À volta, o lobisomem continua a passear-se, falando descontraidamente com uma vampiresa que parece pronta para voar pela noite em busca não entendo de quê...


Passamos ao pequeno jardim, onde abóboras suspensas no ar - como terão feito este truque - iluminam este espaço onde a noite se adensa. Trazem-nos um cálice, dizem-nos que são lágrimas de feiticeira, néctar muito raro, que temos que provar, pois nunca esqueceremos o sabor daquela bebida exótica. Começo por saborear um pouco, deixando o sabor apoderar-se dos meus lábios, sinto uma mistura de doce com pimenta, que fervilha na pele, convidando a beber mais. Arrisco e sinto que um leve fogo me queima a garganta, e avança pelos meus músculos, sinto como que um vórtice me suga e perco os sentidos...! 

Acordo ouvindo vozes há minha volta, parecendo distantes como se um vidro estivesse entre nós... Abro mais os olhos e vejo que existe, sim, um vidro, à minha volta, redondo, com filigranas de cor rubi... como os do copo de que acabei de beber... Vejo à minha frente a cara do Maître, um gigante...Não, não é gigante, sou eu que estou minúscula, dentro do cálice que me ofereceram. Ainda adormecida de todas estas novas sensações, tento perceber o que se passa,  consigo perceber que não chegarei ao topo, não vislumbro como poderei sair... O Maître diz-me "Não podes sair", como se adivinhasse os meus pensamentos. Começo a recuperar as forças, e bato no vidro, que se passa, onde me levas, responde-me...


Entrega-me noutras mãos e vejo à minha frente aqueles olhos perturbadores que ao início da noite me chamaram a atenção... Ao olhá-lo mais de perto, sinto o corpo adormecer, fico quieta, presa naquele olhar... Bebeste as lágrimas de feiticeira... Quando te vi, sabia que as provarias... Que queres de mim??? Como aconteceu isto...? Pergunto, com um misto de confusão, medo, sensação de que apenas posso estar a sonhar... As lágrimas de feiticeira são poderosas, quem as bebe fica prisioneira de quem serviu o cálice... Porque me queres como tua prisioneira? Os seus olhos não paravam de me fixar, como se estivessem mais fascinados comigo, do que eu estava com tudo aquilo, sentia-me já não com medo, mas como que hipnotizada... 


Não irei fazer-te mal, prendi-te neste cálice porque quero olhar-te, um dia já fui assim, e perdi quem eu fui... Quem tu foste? Já fui humano e com o olhar cheio de esperança como tu, tornei-me numa criatura da noite e não me lembrava de como era antes... Quero levar-te comigo, posso contemplar-te durante horas a fio, será que consegues devolver-me um pouco do que era...?


Fiquei suspensa daquelas palavras, daquele olhar saudoso e que sofria... Não precisas de mim para te lembrares como é ser humano, disse-lhe, se não estivesse ainda dentro de ti, não o terias reconhecido quando me olhaste, eu seria indiferente para ti, apenas mais uma mortal... Sei que te lembras, e sei que também te lembras que não se prende a esperança, porque senão ela morre... 


Tens razão, não posso manter-te aqui... Passou a mão por cima do cálice e de novo um vórtice me puxou, desta vez para fora do copo. Obrigada, disse eu, e sem saber se o devia fazer, peguei-lhe na mão, enorme, com garras, assustadora... Por momentos vi, vi quem tinha sido aquela criatura do imaginário... Vi que foi um homem com sonhos, alegrias e, sim, esperança... Vi como perdeu tudo isso, como se transformou num dos nossos medos mais profundos... 


Senti vontade de ficar ali mais um pouco, apesar de ele me dizer "Estás livre, podes ir embora, ninguém te travará." Fiquei, mais um pouco, lembrei-lhe daquelas pequenas coisas que fazem os humanos felizes, vi um brilho nos olhos dele, ouviu tudo e disse, "Preciso ir-me embora, apenas na Noite das Bruxas podemos estar entre os humanos, a noite está a acabar."


"Posso voltar na próxima Noite da Bruxas?", perguntei. Não esperei pela resposta, "Até daqui a um ano, estarei aqui", e saí, livre, como tinha chegado.


II

Há um ano que a serra me chama. Embrenho-me cada vez mais nas suas profundezas e nem sinal do meu misterioso amigo. A não ser a estranha convicção de que alguém me observa, a uma distância que não sei quanto segura é.


Quase me aventurei na noite, disposta até a encontrar vestígios dos velhos rituais que não sei se já consigo compreender.


Mas só numa noite do ano podemos estar entre os humanos, disse-me ele. Não fora isso, e o apelo da noite seria – suspeito - irresistível. Só assim já me acorda a meio da noite, arrancando-me de um sonho que acaba sempre da mesma forma.


Volto àquele sítio, sou eu mesma, vejo o meu rosto reflectido nos espelhos, não foi sonho, não naquela noite, apenas nas que se seguiram.


Aproxima-se outra noite das bruxas, ainda sei o caminho, voltarei lá. Vou cumprir a minha promessa, não apenas para manter a minha palavra, mas porque os sonhos não me são suficientes.



III

Noite de bruxas.


A lua cheia ilumina-me o caminho, por entre uma chuva fininha que deixa pequenas marcas na estrada, como que a deixar a marca do caminho de volta a casa. Que neste momento não sei se quererei encontrar.


Chego às mesmas ruas estreitas, direita, esquerda, em frente, direita. Lá continua o velho coreto, a olhar-me imponente, como se me conhecesse a mim e ao meu destino. Olhei à volta e encontrei as escadas, subi.


De lá de cima via-se a vegetação à volta, densa, envolta por um nevoeiro que parecia poder tocar-se.


De entre essa nuvem branca surgiu uma sombra na noite, que se materializou ao meu redor, sussurrou-me ao ouvido “Vem comigo”, e eu disse sim. Envolveu-me na sua capa e levou-me, esquerda, frente, direita, esquerda, vento, árvores, perdi o caminho.


“Onde estamos?” – quis eu saber.


“Em minha casa” A  mesa já estava posta para os dois, não queria jantar, queria perguntar-lhe tanta coisa, queria dizer-lhe tanta coisa, mas ele puxou-me uma cadeira, sentei-me.


Satisfez-me a curiosidade, deixou que o inundasse de perguntas. Calei-me então, e ganhei coragem para lhe dizer: “Tens vindo visitar-me, aos meus sonhos.” “De dia sou eu, de noite, estou contigo.”


E estendi-lhe a mão, “Quero que me vejas, como eu te vi naquela noite.”


Segurou-me a mão, gentilmente, apertou-a entre as suas mãos de fábula, e libertei a minha alma, para que a visse, para que se visse como eu o via.


Quando abri os olhos, vi que os seus estavam tristes. Que se passa?, perguntei. Não devias querer estar comigo. Porquê? Tens apenas uma vida para viver, não a eternidade de momentos para desperdiçar. E porque seria desperdício, estar aqui, contigo? Lembras-te do que te disse? Apenas numa noite do ano estou visível aos humanos… Eu sei, mas senti-te comigo nas outras noites, até durante o dia… Apostaria que estavas perto… Estava perto, mas não te poderei nunca tocar, apenas ver-te dormir, enquanto sonhas. Mas hoje não…


Lá fora a chuva aumentou, batia forte nos vidros, podia imaginá-la a formar um rio, um rio que nos renovaria.

E assim ao som da chuva, a nossa pele se fez igual, as mãos, os braços, os lábios, iguais, podiam tocar-se, sem medos, sem mais que o outro. E assim numa noite amei como se um ano fosse, como apenas numa noite mágica o poderia fazer. Deixei de ser eu, deixou de ser ele, na realidade não interessava, tudo éramos nós.


O nascer do sol aproximava-se, percebeu. Trouxe-me um cálice e ofereceu-me. “Não são lágrimas de feiticeira?” – Perguntei. Sorri. “Não, não quero prender-te mais. Nunca mais.”


Era quente, doce, mas tinha um toque amargo, bem lá no fundo, quase imperceptível, mas que ficou a escorregar-me na garganta, tentando libertar-se do doce. “O que é?” 


“Chá de Lethe” (*). Tocou-me docemente numa madeixa do cabelo, com um olhar de saudade que me deixou confusa, beijou-me de novo e eu deixei-me ir, esqueci o toque amargo do líquido que acabara de beber.


IV

Tenho acordado sobressaltada, os sonhos não me deixam. Não os entendo, voo pela serra, mas não tenho asas, nem sequer corpo, voo e não chego a lugar nenhum, limito-me a deambular, perdida nos céus da serra. Todos os dias sonho, todos os dias o sonho me acorda. Antes sonhava que bebia um vinho rubro, o vidro quebrava-se-me nas mãos, o líquido inundava o chão e eu fundia-me com ele, não me afogava, apenas deixava de existir ali. Agora sonho com os céus da serra.

Sonho em sobressalto, acordo e sinto um vazio que não sei tocar, a que não sei dar nome.

O meu caderno tem algumas folhas arrancadas. Não sei porquê. Talvez tenha lá escrito os sonhos de outras noites, porque me parece que já estive neste sonho antes.



Tenho menos sonhos agora. As noites são mais calmas. Os dias também. Eu não.

Está sol. O dia está bonito. Mas espero a noite. A lua é mais bonita, faz inveja ao sol. A noite é silenciosa, posso sentar-me a ouvir. Oiço muitas coisas à noite, muitas histórias, muitos murmúrios. Tento ouvir-me a mim mesma, há algo que tento ouvir. Mas não sei o que é. Mais difícil encontrar, quando não se sabe o que se procura.



A lua está tão bonita hoje. Ali, no cimo da colina. Parece que dorme no seu regaço. Junto à casa da colina. Sempre me fascinou, aquela casa, escondida lá em cima. Não sei bem porquê. Um dia irei lá.



Na Grécia Antiga, Lete ou Lethe (em grego antigo λήθη; [ˈlεːt̪ʰεː], grego moderno: [ˈliθi]) literalmente significa "esquecimento".

Na mitologia grega Lete é um dos rios do Hades. Aqueles que bebessem ou até mesmo tocassem na sua água experimentariam o completo esquecimento.

1 comentário:

  1. Confesso não ser fã dessa tradição, mas o teu conto é lindo!
    beijinho

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