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"a escrita é a minha primeira morada de silêncio" |Al Berto

sábado, 5 de outubro de 2013

Doem-me as tatuagens

# Monólogos da Desalinhada #
Isa Lisboa

Doem-me as tatuagens. Não era suposto doerem-me, não agora. Era suposto ter sido apenas aquela dor – a da tinta a entranhar-se, pigmento a pigmento, a gravar-se em mim. Só essa dor. Momentânea.

Dor que se transformaria em cor, num desenho que ficaria para sempre, mas que me faria sorrir quando me olhasse ao espelho. Que me faria sorrir por ter vencido as cicatrizes, por delas ter criado algo de belo, que não mais doía ao olhar, que não mais afastava os estranhos, que não mais me afastava a mim. Que não mais me faria empurrar para longe quem se aproxima.

Doem-me as tatuagens. Doem-me como se fossem velhas feridas, daquelas que doem nos dias de frio. Doem-me como se fossem um membro estraçalhado, tirado de mim para que o sangue doente não mais passasse e não fizesse estragos no que sobrasse. Tira-se uma parte de nós, mas ela continua a doer, nos dias de chuva, nos dias de calor, nos dias em que tudo dói.

Dói-me e sei que estou viva, dói-me e sei que já vivi. A dor diz-me que nada do que fazia sentido, o faz mais, que me enganei em tudo o que esperei, que me enganei em tudo o que dei.

Doem-me as tatuagens, as que fiz com raiva, e mais ainda as que fiz com amor. O amor, em qualquer das suas formas, tem tanto o poder da cura milagrosa, como o poder de tudo devastar.

O lado negro do amor é como se fora uma bomba atómica. A ele poucos sobrevivem, e quando a explosão se dá, aqueles de nós que ficam de pé, não mais se reconhecem, o corpo já não é o nosso. Na alma ficam sulcos, enormes, como se foram machadadas, investidas por um lenhador inexperiente, que em vez de cortar o tronco em duas estocadas misericordiosas, investe várias vezes, tantas vezes, deixando ali lascas perdidas, indiferente à seiva que corre, perdida no chão da floresta.


Doem-me as tatuagens, as que fiz para lembrar, ainda mais as que fiz para esquecer. Já não era suposto doerem-me, escondi as cicatrizes com elas…

Arte: Sam Spratt

8 comentários:

  1. Quando a tatuagem na pele dói, as do papel tornam-se tesouros...
    Não há melhor forma de dizer, que a tua prosa provocou arrepios durante a leitura...
    Adorei, Isa!
    Beijinhos!

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  2. Gosto. As palavras pintam imagens de ver com a alma que já sabe das cicatrizes.
    Obrigada Isa

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  3. Gosto. As palavras pintaram imagens de ver com a alma que sabe das cicatrizes.
    Obrigada Isa
    Bjs

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  4. Isa... as tatuagens impressas na alma jamais podem ser apagadas. Muito forte e linda a forma com que descreve em sua prosa ! Parabéns pelo trabalho... um forte abraço !

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  5. Muito profundo o teu texto e a imagem das tatuagens é uma boa comparação com as dores e as alegrias que o amor é capaz de nos provocar.

    Bjs

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  6. não há bálsamo para uma tatuagem dorida,

    há palavras a pintar a cor

    gostei, Isa

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  7. As dores da alma são as que mais doem e não há tatuagem que possa escondê -las.Belíssimo, Isa.

    Beijo.

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  8. acho que não são só as tatuagens que doem...mas outras que estão tatuadas na alma...

    :)

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