Quem lê / Who's reading

"a escrita é a minha primeira morada de silêncio" |Al Berto

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Quase / Almost

(A mim manera, Il Divo)

Já tinha colocado o vestido, e a pequena gargantilha.
O cabelo, não lhe dava muito trabalho, escovava-o e ficava bonito, liso, como sempre. Apenas a cor já não era a mesma, mas continuavam bonitos, no seu novo tom.
Recusava-se a cortá-lo, uma das suas amigas chamava-a de Sansão, mas não se importava. Ainda conseguia tratá-lo, massajá-lo delicadamente com o seu champô e penteá-lo demoradamente, escová-lo cem vezes, como sempre tinha feito.
Isso ainda conseguia. Passar o batôn e a sombra era mais difícil. Exigia mais precisão e as mãos já lhe tremiam. Mas queria pôr um pouco de maquilhagem. Não para tapar as rugas, são inevitáveis, sulcos da vida. Só um batom leve, rosa, já não usaria batom vermelho, agora que já não havia lábios para beijar.
Há anos que se divorciara, um pequeno escândalo na altura. Ainda o amava, irremediavelmente. Mas os seus dias já não eram tristes, já não chorava de solidão, como nos dias em que ele lhe trazia flores, tentando que o seu perfume disfarçasse o perfume que trazia colado á roupa. Um diferente cada dia. E cada dia lhe dizia que és tu que importas, é para ti que volto.
Não tiveram filhos, talvez se tivesse tido, estaria aqui na mesma, sem ninguém que a ajudasse com a maquilhagem, como a maioria das suas amigas.
Mas a jovem assistente viria ajudá-la, tinha-lhe prometido uma caixa enorme de maquilhagem em troca.
Não a podia censurar, supunha, parecia-lhe que o ordenado que ela ganhava não era proporcional à mensalidade que pagava naquela casa de repouso.
Um luxo que podia agora oferecer-se, depois de muitos anos antes ter recusado a pensão de alimentos do marido, com apenas um emprego instável como trunfo.
Quem diria que uma pequena ideia, formada naquele escritório com pouca luz, um dia cresceria da forma que cresceu…
Já estava então pronta, ao sair reparou no álbum de fotos em cima da cama. Voltou atrás e colocou-o no lugar.
Olhou-se novamente ao espelho. Lembrou-se de quando o espelho lhe devolvia um rosto contornado por enormes cabelos negros. “Envelheci”, pensou, “E ainda estou bonita. Quase não teria valido a pena. Quase.”

(Enviado para a "Fábrica das Letras")

Baseado num trabalho de Sherlin Rezaeia

She putted on the dress, as well as the little neckless.
The hair, wasn’t much trouble, she would brush it and it would look beautiful, smooth as always. Only the colour wasn’t the same, but it was still beautiful in its new tone.
She refused to cut it, one of her friends called her Samson but she didn’t care. She could still take care of it, massage it gently with the shampoo and comb it patiently, brush it a hundred times, as she had always done.
That she still could do. Put on lipstick and eye shade was more difficult. It required more precision and her hands already trembled. But she wanted to put a little makeup. Not to cover the wrinkles, they are inevitable, furrows of life. Just a light lipstick, pink, she would no longer wear red lipstick, now that there were no lips to kiss.
They had divorced years ago, a minor scandal at the time. She still loved him, hopelessly. But her days were no longer sad, no longer she cried from loneliness, as in the days when he brought her flowers, trying to disguise the perfume in his clothes. A different one each day. And every day he would say you are the one I care for, the one I came back to.
They had no children, maybe if they had, she would still be here without anyone to help her with the makeup, like most of her friends.
But the young assistant would help her, she had promised her a huge box of makeup in return.
She couldn't blame her, she thought, it seemed that the salary the girl earned was not proportional to the instalment she paid in that nursing home.
A luxury she could now afford, after many years earlier she refused the alimony from her husband, with only one unstable employment on her sleeve.
Who would have thought that a small idea, formed in a low light office one day would grow the way it has grown...
Now she was ready to leave, she noticed the photo album on the bed. Went back and puted it in place.
She looked at herself in the mirror again. She remembered when it returned a face skirted by an enormous black hair. "Grown old," she thought, "I'm still pretty. Almost would not have been worth it. Almost. "

10 comentários:

  1. Mas que história real e inquietante.
    Teve sorte,mas está sózinha, porém feliz.
    Lindo.

    beijinho

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  2. Um conto real...com um final feliz!

    Não me importava que fosse o meu!

    Beijos.

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  3. Que bela narrativa!

    Envelhecer é isso mesmo...


    Beijinho

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  4. Conheço algumas casas de repouso (lares) e quase ninguém se sente bonito...
    Gostei do teu conto. Real e bem narrado.
    Beijo, querida amiga.

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  5. Belo e emocionante texto!

    Gostei demais...

    Bjos

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  6. para repouso, chega a morte

    há vidas assim, ligeiramente maquiadas

    gostei, Isa

    um abraço

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  7. Um conto bonito.
    É importante saber envelhecer.

    Beijinhos

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  8. Admiro muito aqueles que sabem envelhecer e não se preocupam com as rugas. Mas o quase ali no final - quase me deixa em dúvida. bacio carissima e bom fim de semana

    Ps. Acreditas que somente agora percebi que es tu de Portugal. rs

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  9. Gostei muito do teu texto, disse-me muito...
    Bjs

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  10. Gostei muito do teu conto,
    Ao mesmo tempo triste e enternecedor,
    Deu bem, para imaginar uma senhora idosa com seus cabelos longos,
    Com suas marcas na alma.
    (é de textos assim, que eu gosto que dá pra ver, sentir a personagem)

    Muito bem escrito.

    Beijo

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Um espaço para recortes que completem o álbum de instantâneos... Obrigada pela visita!
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